Para entender melhor, leia primeiro a parte I:
Embora tivesse chegado a uma irritação extrema no dia anterior, Lívia acordou bem. Tomou café e foi para a empresa com um humor bem melhor do que havia saído no dia anterior.
Trabalhou o dia todo concentrada procurando não pensar muito em seus sentimentos. Na hora de sair, Lívia já estava em pé pegando seu cachecol quando seu supervisor entrou na sala.
- Posso falar com você? – perguntou já fechando a porta atrás de si.
A vontade de Lívia era olhar para o relógio e perguntar “Agora?!?”, mas simplesmente fez um gesto com a cabeça dizendo que sim e logo apontou a cadeira para que ele se sentasse. Sem rodeios ele disse:
- Vim lhe dar os parabéns pelo projeto bem elaborado que montou, a diretoria adorou. Seu projeto foi escolhido e o estaremos adotando a partir da semana que vem, portanto estaremos marcando uma reunião contigo para maiores esclarecimentos.
- Ótimo. Obrigada – Lívia foi direta e objetiva.
Seu supervisor levantou-se, ela também, logo em seguida e sem mais delongas saiu da empresa com um sorriso que não conseguiu evitar que fosse estampado em seu rosto.
Ao chegar ao ponto de ônibus Lívia logo se sentou no banco que, desta vez, estava vazio, mas não demorou nem cinco minutos para que ela avistasse Bianca, acompanhada de sua mãe, caminhando em direção do mesmo banco em que se encontraram no dia anterior. Sua mãe deixou-a ali sentada avisando que voltaria logo.
- Olá – desta vez foi Lívia que começou o diálogo.
- Olá Lívia... Pelo jeito passou a raiva, não é? Melhoras no trabalho?
Lívia se perguntou como ela podia perceber estas coisas? Ela nem se quer estava vendo o sorriso em seu rosto... Mas com certeza percebera por causa do tom de voz.
- Sim. Meu supervisor veio falar comigo, me agradeceu, me elogiou e disse que marcará uma reunião com o quadro de diretores, o que significa que eles já sabem ou saberão que o projeto foi minha autoria.
- Que bom! Viu só, nada como um dia após o outro... Hoje você está usando um perfume diferente – disse Bianca aproximando-se a Lívia – Mas é muito bom também... Me lembra frutas.
- Obrigada. É porque este perfume é mais cítrico... – Lívia sentiu-se incomodada em somente agradecer e retribui com outro elogio – O seu cachecol é lindo, onde comprou?
- Minha mãe que fez pra mim – respondeu a garotinha acariciando o cachecol como se fosse um bichinho de pelúcia – Fui eu que escolhi as cores!
- Mas... Você conhece as cores? – Lívia perguntou inocentemente.
- Bom, confesso que escolhi as cores para o cachecol pelos nomes... Eu nasci com os olhos normais, mas não durou mais que um ano... Perdi a visão antes de aprender as cores. E não tenho memória de coisas que vi... a não ser o rosto de minha mãe... O vejo todos os dias na minha cabeça.
- Ah...- Lívia não sabia o que dizer exatamente, pois a garota não parecia estar se lamentando – Sua mãe é linda... Você também é.
- Obrigada! – respondeu com um largo sorriso no rosto – Aposto que você também é... Posso te ver? – Perguntou com as duas mãozinhas levantadas em direção ao rosto de Lívia.
Bianca nem precisou dizer nada para que Lívia entendesse o que ela queria. Abaixou-se em direção as mãos de Bianca que, delicadamente acariciou o rosto de Lívia tocando olhos, nariz, boca, queixo e cabelos.
- Como imaginei... Você é linda! Adorei seu cabelo... é tão macio e cheiroso.
Os olhos de Lívia se encheram de lágrimas; por frações de segundos se pegou analisando quantas e quantas vezes se deparou com coisas e pessoas belas, mas estava com a cabeça tão ocupada que não pode apreciá-las. Engoliu em seco antes que alguma lágrima rolasse, respirou fundo e perguntou:
- Como foi que...
- Que perdi a visão? – interrompeu Bianca livrando Lívia do constrangimento de ter que completar a pergunta – Tenho uma doença muito rara, se chama Síndrome de... Bom, nunca sei falar essa palavra, mas lembra um nome alemão. O médico disse que uma em cada dois milhões de pessoas tem. E eu tenho.
Lívia não entendeu a princípio, mas parecia que a garota não estava revoltada por carregar esta síndrome. E então sua mágoa com Deus não lhe permitiu se calar:
- Não acha sacanagem da parte de Deus, entre dois milhões de pessoas Ele escolher justo você para dar esta síndrome?
- Sacanagem? Não... Já conversei muito com Deus a respeito de minha doença e sabe, Ele tem um jeito diferente de lidar com as coisas. Não pensa como a gente...
- Peraí... Você fala com Deus? E Ele te responde? – Lívia interrompeu abruptamente já se questionando acerca da sanidade mental da garota.
- Sim, todos os dias falo com Ele. E sim, Ele responde sim... Deus pode falar conosco de várias maneiras, especialmente através da bíblia e do Espírito Santo. Eu tenho uma bíblia em áudio... ouço todos os dias. Mas voltando ao que eu dizia, Deus nunca dá pra gente um fardo mais pesado do que a gente pode suportar e se Ele me deu esta síndrome é porque Ele me fez forte o suficiente para carregá-la. Então se você parar para pensar: Ele me acha especial; dentre dois milhões de pessoas Deus achou que eu poderia ter a síndrome. E porque eu não o culpei, e sempre busquei ajuda dEle, Ele mesmo me ensina dia-a-dia a lidar com ela.
- Olha, compreendo seu ponto de vista... E acho até que você pode ter razão, mas não sei se eu levaria numa boa, sem revoltas o fato de perder a visão
- Então, graças a Deus que ele tirou a minha e não a sua, não é mesmo?
Lívia, muito icomodada, parou para refletir e percebeu que estava recebendo lições de sabedorias de uma garota de 9 ou 10 anos... Como isso poderia ser possível? Ela mesma já vivera três vezes mais que Bianca e parecia não ter nem metade da percepção da garota.
- Tem algum outro sintoma além da perda da visão? – agora Lívia estava interessada –
- Nos primeiros anos foi somente a visão que foi estragando aos poucos, mas agora a síndrome já começou a atacar outras partes do corpo... Tenho tido muitas dores, mas graças a Deus eu tenho uma mãe muito forte que me ajuda a suportar... Mas ela tem sofrido muito... Tenho pedido a Deus para acelerar um pouco as coisas.
- Como assim acelerar as coisas?! O que você quis dizer com isso?
- Portadores desta síndrome não passam dos oito anos de idade... Eu já tenho dez... Mas isso porque já fiz inúmeros tratamentos até pra fora do país... Minha mãe vendeu tudo o que podia para tentar encontrar a cura... Mas não existe cura – Agora a garota estava cabisbaixava com voz pesarosa e os olhos marejados. Lívia sentiu-se mal por ter tocado no assunto.
- Não fique triste... A medicina está tão moderna e tudo acontece tão rápido, estou certa que em algum lugar do mundo alguém já deve ter feito algum progresso em pesquisas. E você está forte saudável... Ainda vai viver muitos anos...
- Não tenho medo de morrer, Lívia. Não fico triste por não existir cura... fico sentida em ver o quanto isso entristece minha mãe, o quanto minhas crises de dor a atormentam. A doença está matando meu corpo, mas também machucando a alma da mamãe. Falo sempre pra ela que as dificuldades nos fazem crescer e ficar mais fortes, mas acho que ela está chegando no limite dela... Por isso tenho pedido para Deus apressar as coisas.
- Não diga uma coisa dessa Bianca!
- Não diga o que? – perguntou a mãe de Bianca que acabara de chegar com uma sacola de frutas
- Que bom que chegou mãe, quero te apresentar minha nova amiga: Esta é Lívia.