sexta-feira, 29 de julho de 2011

COM OS OLHOS DO CORAÇÃO - Parte III


Na quarta-feira Lívia nem viu a hora passar no serviço, estava abarrotada de coisas para fazer. E como de costume, saiu vários minutinhos mais tarde do que seu real horário de sair.
            Saiu para a rua ainda organizando vários papéis dentro de sua pasta, chegou até derrubar alguns, mas um senhor muito gentil que estava passando pegou do chão para ela. Livia agradeceu e se apressou em direção ao ponto de ônibus.
            Ao chegar, toda esbaforida, foi logo se sentando:
- Achei que não viria hoje – comentou Bianca sentada no mesmo lugar de sempre com roupas de inverno e o lindo cachecol que sua mãe lhe fizera.
- Atrasei um pouco por causa de alguns relatórios que tive que terminar ainda hoje... Tudo bem contigo? – Lívia perguntou dando um beijinho no rosto de Bianca, como se fossem amigas a há meses.
- Estou bem sim, graças a Deus! – Abriu um sorriso largo expressando gratidão pelo beijo que ganhara.
- Sabe, e por falar em Deus... Fiquei pensando naquilo que você me disse ontem...
- No que exatamente – interrompeu Bianca tentando entender o que Lívia queria dizer
- Sobre você falar com Deus, a Síndrome e tudo o mais... Já que você fala com Ele e Ele até conversa contigo... Por que você não pede para Ele te curar? Ouvi dizer que Ele pode fazer coisas impossíveis...
            Bianca riu, com muita graça e respondeu serenamente:
- Sabe no começo... Logo que aprendi a me relacionar com Ele eu pedi sim... Pedi muito. E sei que Ele realmente pode fazer o impossível acontecer, eu já presenciei muitos milagres sendo realizados, mas Deus não faz as coisas simplesmente porque pedimos. Deus tem planos muito maiores, que às vezes a gente não consegue entender porque nossa mente é humana... é muito limitada em relação a um Deus todo-poderoso criador de todas as coisas.
- Mas que propósito poderia ter Deus que incluísse sua doença?!?
- Olha, pelo fato de esta Síndrome ser rara, eu já apareci na televisão, já dei entrevista para telejornais e programas de rádio... E em todas as oportunidades que tive eu falei sobre a graça, a misericórdia e o amor de Deus... E tem mais... Se eu não tivesse esta síndrome, talvez eu não o tivesse buscado, não teria esse relacionamento lindo que tenho com Ele... Se eu não fosse tão debilitada, minha mãe não teria que comprar alimentos fresquinhos para mim todo o dia naquela quitanda, então com certeza eu não ficaria neste banco, não teria conhecido você... Portanto você não estaria neste momento ouvindo das maravilhas que Ele pode fazer quando entregamos nosso coração a Ele.
            Lívia ficou em estado de choque. A garota tinha razão... Lívia jamais deu atenção alguma para qualquer pessoa que se quer tentou falar de Deus para ela. Lívia tivera pai alcoólatra que batia na mãe, por isso desde bem nova desacreditava na existência de um Deus amoroso. E sempre que ouvia falar de Deus Pai... Bem a imagem de pai que tinha não era das melhores. Ela engoliu em seco se perguntando se seria esta a razão de tudo aquilo estar acontecendo, seu carro quebrado, ter que pegar ônibus naquele ponto, ter conhecido Bianca e todas as coisas que ela já tinha dito... Será que Deus estava querendo dizer algo para Lívia?
- Sabe, Líh – disse Bianca interrompendo a reflexão de Lívia – posso te chamar de Líh, não posso?
- Claro que sim, somos amigas agora, lembra?
            Aquelas palavras encheram o rosto de Bianca de alegria, a garota tateou o colo de Lívia procurando por sua mão, ao encontrá-la apertou-a contra o peito e agradeceu, logo em seguida continuou o que dizia:
- Você me perguntou sobre minhas conversas com Deus... E sobre pedir coisas para Ele... Sabe, tem algo que se fosse da vontade dEle eu gostaria que Ele fizesse... – a garota pausou –
- Poder enxergar novamente? – Arriscou Lívia diante da pausa da garota –
- Não... Na verdade eu pediria para que Ele, nem que fosse por alguns minutos, fizesse com que as pessoas pudessem ver o mundo como eu vejo... Sabe, existem tantas coisas que estão além do que podemos ver... Os olhos podem enganar... Foi assim que a serpente enganou Eva, fez com que ela visse o quão atraente era o fruto, e por causa disso Adão e Eva fecharam os olhos para o engano que havia por trás de tudo aquilo. Gostaria que as pessoas pudessem apreciar de forma mais intensa um afago, um beijo, uma brisa, o calor do sol, o cheiro de bolinho de chuva – Bianca riu ao dizer isso – Adoro bolinhos de chuva! E tudo o mais que não precisa ser visto, mas sim sentido e apreciado!
            Lívia estava chorando, não conseguira se controlar. Ao perceber, Bianca apertou sua mão contra o peito novamente e logo em seguida a abraçou. Ao sentir aqueles pequeninos braços a envolvê-la Lívia chorou mais ainda e ficou ali naquele abraço fofo e cheiroso por alguns minutos. E então o ônibus que ia para seu bairro chegou. Lívia tentou se recompor, se levantou, beijou a testa de Bianca e disse:
- Até amanhã, linda! A gente conversa mais amanhã.
- Até! Orarei por você esta noite, amiga. Saiba que Deus te ama muito.
            Lívia se virou para entrar no ônibus e lágrimas tornaram a verter de seus olhos. Começou a pensar que, na verdade, cega era ela e não a garota. Não parava de chorar... Ela não sabia ao certo o que estava acontecendo... Mas sabia que algo estava acontecendo em seu coração...



Para entender melhor, leia primeiro a Parte I: 
E a parte II:

segunda-feira, 4 de julho de 2011

COM OS OLHOS DO CORAÇÃO - Parte II

Para entender melhor, leia primeiro a parte I: 
              
              Embora tivesse chegado a uma irritação extrema no dia anterior, Lívia acordou bem. Tomou café e foi para a empresa com um humor bem melhor do que havia saído no dia anterior.
            Trabalhou o dia todo concentrada procurando não pensar muito em seus sentimentos. Na hora de sair, Lívia já estava em pé pegando seu cachecol quando seu supervisor entrou na sala.
- Posso falar com você? – perguntou já fechando a porta atrás de si.
            A vontade de Lívia era olhar para o relógio e perguntar “Agora?!?”, mas simplesmente fez um gesto com a cabeça dizendo que sim e logo apontou a cadeira para que ele se sentasse. Sem rodeios ele disse:
- Vim lhe dar os parabéns pelo projeto bem elaborado que montou, a diretoria adorou. Seu projeto foi escolhido e o estaremos adotando a partir da semana que vem, portanto estaremos marcando uma reunião contigo para maiores esclarecimentos.
- Ótimo. Obrigada – Lívia foi direta e objetiva.
            Seu supervisor levantou-se, ela também, logo em seguida e sem mais delongas saiu da empresa com um sorriso que não conseguiu evitar que fosse estampado em seu rosto.
            Ao chegar ao ponto de ônibus Lívia logo se sentou no banco que, desta vez, estava vazio, mas não demorou nem cinco minutos para que ela avistasse Bianca, acompanhada de sua mãe, caminhando em direção do mesmo banco em que se encontraram no dia anterior. Sua mãe deixou-a ali sentada avisando que voltaria logo.
- Olá – desta vez foi Lívia que começou o diálogo.
- Olá Lívia... Pelo jeito passou a raiva, não é? Melhoras no trabalho?
            Lívia se perguntou como ela podia perceber estas coisas? Ela nem se quer estava vendo o  sorriso em seu rosto... Mas com certeza percebera por causa do tom de voz.
- Sim. Meu supervisor veio falar comigo, me agradeceu, me elogiou e disse que marcará uma reunião com o quadro de diretores, o que significa que eles já sabem ou saberão que o projeto foi minha autoria.
- Que bom! Viu só, nada como um dia após o outro... Hoje você está usando um perfume diferente – disse Bianca aproximando-se a Lívia – Mas é muito bom também... Me lembra frutas.
- Obrigada. É porque este perfume é mais cítrico... – Lívia sentiu-se incomodada em somente agradecer e retribui com outro elogio – O seu cachecol é lindo, onde comprou?
- Minha mãe que fez pra mim – respondeu a garotinha acariciando o cachecol como se fosse um bichinho de pelúcia – Fui eu que escolhi as cores!
- Mas... Você conhece as cores? – Lívia perguntou inocentemente.
- Bom, confesso que escolhi as cores para o cachecol pelos nomes... Eu nasci com os olhos normais, mas não durou mais que um ano... Perdi a visão antes de aprender as cores. E não tenho memória de coisas que vi... a não ser o rosto de minha mãe... O vejo todos os dias na minha cabeça.
- Ah...- Lívia não sabia o que dizer exatamente, pois a garota não parecia estar se lamentando – Sua mãe é linda... Você também é.
- Obrigada! – respondeu com um largo sorriso no rosto – Aposto que você também é... Posso te ver? – Perguntou com as duas mãozinhas levantadas em direção ao rosto de Lívia.
            Bianca nem precisou dizer nada para que Lívia entendesse o que ela queria. Abaixou-se em direção as mãos de Bianca que, delicadamente acariciou o rosto de Lívia tocando olhos, nariz, boca, queixo e cabelos.
- Como imaginei... Você é linda! Adorei seu cabelo... é tão macio e cheiroso.
            Os olhos de Lívia se encheram de lágrimas; por frações de segundos se pegou analisando quantas e quantas vezes se deparou com coisas e pessoas belas, mas estava com a cabeça tão ocupada que não pode apreciá-las. Engoliu em seco antes que alguma lágrima rolasse, respirou fundo e perguntou:
- Como foi que...
- Que perdi a visão? – interrompeu Bianca livrando Lívia do constrangimento de ter que completar a pergunta – Tenho uma doença muito rara, se chama Síndrome de... Bom, nunca sei falar essa palavra, mas lembra um nome alemão. O médico disse que uma em cada dois milhões de pessoas tem. E eu tenho.
            Lívia não entendeu a princípio, mas parecia que a garota não estava revoltada por carregar esta síndrome. E então sua mágoa com Deus não lhe permitiu se calar:
- Não acha sacanagem da parte de Deus, entre dois milhões de pessoas Ele escolher justo você para dar esta síndrome?
- Sacanagem? Não... Já conversei muito com Deus a respeito de minha doença e sabe, Ele tem um jeito diferente de lidar com as coisas. Não pensa como a gente...
- Peraí... Você fala com Deus? E Ele te responde? – Lívia interrompeu abruptamente já se questionando acerca da sanidade mental da garota.
- Sim, todos os dias falo com Ele. E sim, Ele responde sim... Deus pode falar conosco de várias maneiras, especialmente através da bíblia e do Espírito Santo. Eu tenho uma bíblia em áudio... ouço todos os dias. Mas voltando ao que eu dizia, Deus nunca dá pra gente um fardo mais pesado do que a gente pode suportar e se Ele me deu esta síndrome é porque Ele me fez forte o suficiente para carregá-la. Então se você parar para pensar: Ele me acha especial; dentre dois milhões de pessoas Deus achou que eu poderia ter a síndrome. E porque eu não o culpei, e sempre busquei ajuda dEle, Ele mesmo me ensina dia-a-dia a lidar com ela.
- Olha, compreendo seu ponto de vista... E acho até que você pode ter razão, mas não sei se eu levaria numa boa, sem revoltas o fato de perder a visão
- Então, graças a Deus que ele tirou a minha e não a sua, não é mesmo?
            Lívia, muito icomodada,  parou para refletir e percebeu que estava recebendo lições de sabedorias de uma garota de 9 ou 10 anos... Como isso poderia ser possível? Ela mesma já vivera três vezes mais que Bianca e parecia não ter nem metade da percepção da garota.
- Tem algum outro sintoma além da perda da visão? – agora Lívia estava interessada –
- Nos primeiros anos foi somente a visão que foi estragando aos poucos, mas agora a síndrome já começou a atacar outras partes do corpo... Tenho tido muitas dores, mas graças a Deus eu tenho uma mãe muito forte que me ajuda a suportar... Mas ela tem sofrido muito... Tenho pedido a Deus para acelerar um pouco as coisas.
- Como assim acelerar as coisas?! O que você quis dizer com isso?
- Portadores desta síndrome não passam dos oito anos de idade... Eu já tenho dez... Mas isso porque já fiz inúmeros tratamentos até pra fora do país... Minha mãe vendeu tudo o que podia para tentar encontrar a cura... Mas não existe cura – Agora a garota estava cabisbaixava com voz pesarosa e os olhos marejados. Lívia sentiu-se mal por ter tocado no assunto.
- Não fique triste... A medicina está tão moderna e tudo acontece tão rápido, estou certa que em algum lugar do mundo alguém já deve ter feito algum progresso em pesquisas. E você está forte saudável... Ainda vai viver muitos anos...
- Não tenho medo de morrer, Lívia. Não fico triste por não existir cura... fico sentida em ver o quanto isso entristece minha mãe, o quanto minhas crises de dor a atormentam. A doença está matando meu corpo, mas também machucando a alma da mamãe. Falo sempre pra ela que as dificuldades nos fazem crescer e ficar mais fortes, mas acho que ela está chegando no limite dela... Por isso tenho pedido para Deus apressar as coisas.
- Não diga uma coisa dessa Bianca!
- Não diga o que? – perguntou a mãe de Bianca que acabara de chegar com uma sacola de frutas
- Que bom que chegou mãe, quero te apresentar minha nova amiga: Esta é Lívia.
            Assim que foram apresentadas o ônibus de Lívia chegou, ela se despediu e foi para casa. Tinha muita coisa para refletir... e foi isso que fez o resto da noite... E por alguns instantes chegou até mesmo pensar que a garota não era real... Mas era; real e sensata.


Agora leia a terceira parte:
http://aprendizdetrovador.blogspot.com/2011/07/com-os-olhos-do-coracao-parte-iii.html