quarta-feira, 29 de junho de 2011

COM OS OLHOS DO CORAÇÃO



           Lívia saía do trabalho mais tarde outra vez, porém desta vez ela estava mais irada que nunca. Passara três semanas dormindo pouco e se dedicando muito a um projeto que apresentara hoje no trabalho. Elogios? Não. Somente pressão nos dias anteriores para entregar tudo dentro do prazo. E para piorar as coisas seu supervisor acabara de apresentar o projeto para a diretoria da empresa tomando para si todo o crédito de sua elaboração.
            Ela estava tão zangada que até mesmo se esqueceu que seu carro estava na oficina e desceu até a garagem do prédio pensando encontrá-lo no mesmo lugar de sempre. Ao ver sua vaga vazia, Lívia recordou-se do rosto do mecânico dizendo: “Só vai ficar pronto semana que vem, moça”... E então ela soltou um urro de raiva. Recompôs-se e partiu pisando duro em direção ao ponto de ônibus mais próximo.
            O ponto ficava a apenas três quadras de seu trabalho; e ela tinha cerca de meia hora até o próximo ônibus para seu bairro. Mas a raiva era tão grande que seus passos eram rápidos e bruscos como de um soldado marchando em direção ao exército inimigo. Ao chegar, simplesmente jogou seu corpo no banco do ponto, mal reparou que já havia uma pessoa ali sentada.
- Por que tanta raiva, moça? – a pergunta vinha de seu lado
            Lívia virou-se para ver quem perguntava e viu uma garotinha de uns dez anos, no máximo, de calça jeans, um suéter de lã pink, cachecol todo colorido, gorro e óculos de sol. E mesmo, sem entender porque faria isso, Lívia acabou respondendo a pergunta da estranha ao seu lado:
- Tive um dia, ou melhor, uma semana... Não, foram três semanas de exigências e pressões. Fiz um trabalho perfeito e além de meu supervisor tomar o crédito pra si, não fez nem um elogio se quer ao meu esforço; disse apenas que eu havia cumprido com minha obrigação! Sabe o que é passar anos dando o seu melhor sem uma palavra de incentivo ou louvor?! – Ela praticamente vomitou todas estas palavras.
- O seu cheiro é muito bom, moça, lembra um jardim de flores na primavera – Comentou a garota com um sorriso tão brilhante que parecia refletir toda a luz do sol daquela fria tarde de inverno.
- Obrigada – Lívia respondeu meio sem graça.
- É a primeira vez que você pega o ônibus aqui, não é?
- Sim, meu carro quebrou – Lívia achou chato não retornar a pergunta – E você, o que faz sozinha em um ponto de ônibus?
- Estou esperando minha mãe, ela está naquela quitanda comprando frutas frescas pra mim – disse a garota apontando para uma oficina do outro lado da rua.
- Você quer dizer naquela quitanda – corrigiu Lívia apontando para uma quitanda que ficava uns dois estabelecimentos a direita do local apontado pela garota.
- Sim sim – respondeu a garotinha levemente constrangida.
            E só então Lívia reparou que em sua mão esquerda havia uma bengala guia daquelas usadas por pessoas portadoras de deficiência visual. Sentiu seu rosto corar de vergonha... Estava ali irada por não ter sido elogiada no trabalho e reclamando da vida para uma garotinha que nem se quer podia ver o quão bela estava aquela tarde de inverno.
- Oh... Sinto muito... eu não tinha percebido que... Puxa, sinto muito mesmo...
- Não precisa se desculpar, moça. Nem sentir pena de mim – parecia que a garota havia percebido pesar na voz de Lívia – Não enxergo... Só isso... Não é nada de mais. Veja, estou viva, bem agasalhada, posso sentir o calor do sol tocando meu rosto, posso ouvir o som harmônico de sua voz e também posso sentir o cheiro da grama aqui de trás misturado com seu suave aroma de flores. E ainda estou com o cachecol mais bonito que alguém poderia querer. Viu só quantos motivos para ser grata?
            Lívia sentiu cada palavra como se fossem bofetadas em seu rosto gelado pela brisa. Não conseguiu nem se quer responder. Engoliu em seco e, depois de vários segundos de silêncio perguntou:
- Como é seu nome?
- Bianca... E o seu?
- Lívia... prazer – ela disse já pegando a mão da garota que já estava estendida em sua direção.
- Quanto tempo seu carro vai ficar na oficina, Lívia?
- Uma semana
- Que bom! Vou ter companhia por uma semana. Gosto muito de conversar e não saio muito, mas venho aqui todos os dias neste mesmo horário... É o seu ônibus? – perguntou Bianca percebendo a distração de Lívia e o ronco do motor parando ali em frente.
- Sim, é este.
- Vai lá... Amanhã a gente conversa mais – disse Bianca acenando com um lindo sorriso nos lábios.
           Lívia não conseguiu tirar aquele rostinho lindo da cabeça durante todo o trajeto para sua casa... Aliás já em sua casa pensou várias vezes na atitude da garota. E quando foi para a cama deitou-se questionando como Deus permitia um ser tão angelical passar pela dificuldade de ser completamente cega... E então adormeceu.


Confiram a parte II: http://aprendizdetrovador.blogspot.com/2011/07/com-os-olhos-do-coracao-parte-ii.html